Ora viva.
O número crescente e constante de emails que continuo a receber sobre o tema da farmácia no Reino Unido "obriga-me" a voltar a este tema. Vou escrever este post num estado de motivação profissional perigosamente baixo.
Trabalho como farmacêutico comunitário no Reino Unido há quase cinco anos, e assisti durante esse tempo a uma transformação absolutamente incrível na realidade do papel do farmacêutico e no dia-a-dia da farmácia.
Em 2008 foi publicado o Pharmacy White Paper, e que revolucionou todo o papel do farmacêutico comunitário e todo o financiamento da farmácia.
Pharmacy White Paper
O número crescente e constante de emails que continuo a receber sobre o tema da farmácia no Reino Unido "obriga-me" a voltar a este tema. Vou escrever este post num estado de motivação profissional perigosamente baixo.
Trabalho como farmacêutico comunitário no Reino Unido há quase cinco anos, e assisti durante esse tempo a uma transformação absolutamente incrível na realidade do papel do farmacêutico e no dia-a-dia da farmácia.
Em 2008 foi publicado o Pharmacy White Paper, e que revolucionou todo o papel do farmacêutico comunitário e todo o financiamento da farmácia.
Pharmacy White Paper
The Government published its long awaited White Paper on pharmacy - Pharmacy in England - Building on Strengths, Delivering the Future on 3rd April 2008.
It contains a great many proposals to expand the role of community pharmacy. Work to implement proposals begins immediately, with NHS Employers acting on behalf of Primary Care Trusts, and PSNC discussing a number of key issues. The community pharmacy contractual framework will be refreshed over the next two years, as new services are developed.
A mudança do papel do farmacêutico de alguém cujo papel principal era aviar receitas, para um prestador de diversos serviços e cuidados de saúde é algo de louvar e cuja ideia é recebida de braços abertos por qualquer farmacêutico motivado, pois permite uma aplicação mais abrangente dos conhecimentos adquiridos e uma maior afirmação da profissão em si. Até aqui estamos todos de acordo, mas o problema é que, fruto dos tempos de crise e de contenção orçamental, o lucro obtido pelas farmácias pela dispensa de medicamentos foi drasticamente reduzido, sendo que para a farmácia consiga manter os mesmos níveis de lucro (facturação) passou a ter que oferecer um número enorme de serviços extra.
Vejamos o que mudou apenas em meia dúzia de anos:
Há meia dúzia de anos o papel principal do farmacêutico era efectivamente aviar receitas (e todo o muito conhecimento que isso implica) e o aconselhamento farmacêutico à população sempre que solicitado e apropriado. Aconselhamento e tratamento de condições médicas mais simples através de medicamentos não sujeitos a receita médica. Só estes pontos descritos já são suficientes para tornarem a profissão bastante desafiante e exigente. (é uma realidade bastante diferente da Portuguesa, que dificilmente poderia ser bem explicada e que neste post não vale a pena).
A prestação de serviços extra, era praticamente inexistente, e resumia-se apenas à dispensa e supervisão de metadona e buprenorfina usados no tratamento da dependência de opióides.
Desde há meia dúzia de anos para cá verificou-se a tal transformação do papel do farmacêutico comunitário que acima referi.
Antes de mais, menciono o crescimento constante do número de items dispensados a nível nacional ("The number of prescription items dispensed in England rose nearly 70 per cent in the past decade while the cost to the NHS rose by 58 per cent, an NHS report showed.") Aumento de 70% nos últimos dez anos!O "Pharmacy contract" é composto por três níveis distintos de prestação de serviços:
ADVANCED SERVICES - CAN BE PROVIDED BY ALL CONTRACTORS ONCE ACCREDITATION REQUIREMENTS HAVE BEEN MET; AND
ENHANCED SERVICES - COMMISSIONED LOCALLY BY PRIMARY CARE TRUSTS (PCTS) IN RESPONSE TO THE NEEDS OF THE LOCAL POPULATION.
Dissecando um pouco diria que os Essential Services consistem no papel clássico do farmacêutico comunitário, que já descrevi acima. (aconselhamento e dispensa de medicação à população).
Os Advanced Services são protocolos a nível nacional que incluem serviços como os MUR – Medicines Use Review (The service consists of accredited pharmacists undertaking structured adherence-centred reviews with patients on multiple medicines, particularly those receiving medicines for long term conditions).
Neste serviço, para o qual o farmacêutico tem de adquirir qualificações e um diploma, o farmacêutico faz uma revisão da medicação com o utente, focando os mais diversos aspectos, como a adesão à terapêutica, adequação da forma farmacêutica, da posologia, da presença de efeitos secundários, verificação da eficácia sempre que possível, sugestão de medidas não farmacológicas para as condições apresentadas, a explicação sobre o funcionamento dos vários fármacos e sobre a importância dos mesmos. Por cada consulta destas, que poderá demorar entre 15 e 45 minutos, a farmácia recebe um pagamento de £28. O serviço é gratuito para o utente e pode ser feito a cada doze meses com um utente que tenha, no mínimo, recebido os três últimos meses de medicação da farmácia em questão.
-- > Tudo isto é muito interessante, verdade, mas durante esses 30 minutos em que o farmacêutico esteve na sua sala de consultas com o utente a fazer o tal MUR, nenhum medicamento saiu da farmácia, pois todas as caixas têm de ser verificadas e assinadas pelo farmacêutico e todas as receitas clinicamente validadas pelo mesmo. Durante esses mesmos 30 minutos, qualquer toxicodependente tem que aguardar pelo farmacêutico para que este supervisione e documente a toma da medicação.
Outro serviço bastante recente é o NMS – New Medicine Service (The new medicine service (NMS) was the fourth advanced service to be added to the NHS community pharmacy contract; It commenced on the 1st October 2011. The service provides support for people with long-term conditions newly prescribed a medicine to help improve medicines adherence; It is initially focused on particular patient groups and conditions)
Este serviço é oferecido a qualquer paciente que inicie terapêutica farmacológica em determinadas áreas (Asma, hipertensão, anticoagulantes e outras). Este serviço envolve três etapas e desenrola-se durante o primeiro mês de terapêutica. Obviamente que este processo envolve consultas entre o farmacêutico e o paciente (consultas presenciais ou pelo telefone) É uma iniciativa gratuita para o utente. O pagamento à farmácia pelo NMS é algo de bastante complexo, mas dará umas £20 por NMS completo.
-- > Tudo isto é muito interessante, verdade. Mas durante todos esses 15 a 30 minutos em que o farmacêutico esteve na sala de consultas com o utente a fazer o tal NMS ou numa consulta telefónica, nenhum medicamento saiu da farmácia, pois todas as caixas têm que ser assinadas pelo farmacêutico e todas as receitas clinicamente validadas pelo mesmo. Durante esses mesmos 30 minutos, qualquer toxicodependente tem que aguardar pelo farmacêutico para que este supervisione a toma da medicação.
Depois existem os Enhanced Services que são os mais variados serviços cujo financiamento e detalhes são acordados com os PCT's que constituem as autoridades de saúde regionais (equivalente às ARS - Administração Regional de Saúde)
Uma lista de possíveis Enhanced Services:
A minha farmácia por exemplo presta a maior parte destes serviços. Para todos é necessária formação e aquisição de qualificações específicas (por outras palavras, adquirir mais um diploma).
Por exemplo, a prestação da Pílula do dia seguinte (contracepção de emergência), envolve uma consulta entre o farmacêutico e a utente, que nunca demora menos de 15 minutos. Durante esses 15 minutos já sabem que a farmácia "pára". Numa farmácia como a minha em que todos os dias se faz a supervisão do consumo de metadona a mais de 50 toxicodependentes, fica um pouco "apertado".
Enfim, vim para aqui desabafar, mas a verdade é que o volume de trabalho está a adquirir proporções física e humanamente incomportáveis.
Durante os últimos 10 anos os salários dos farmacêuticos praticamente não variaram (o que tendo em conta a inflação, constitui uma redução significativa do salário) e a remuneração por hora dos farmacêuticos por conta própria (self-employed) teve uma redução real (isto nem considerando a inflação). Há 10 anos atrás, a vida de um farmacêutico no UK era realmente relaxada, e o financiamento da farmácia permitia o exercer de funções sem grandes pressões. Hoje tudo mudou, os farmacêuticos estão constantemente debaixo de pressões para prestação de serviços e passam o dia a "correr" de tarefa em tarefa. Quando o farmacêutico termina uma consulta de MUR com um utente e volta à "dispensary" é capaz de ter uns 10 utentes à espera da sua medicação mensal. Terá que verificar e ensacar tudo, por vezes contactar o prescritor, e responder a pedidos de aconselhamento por parte dos utentes. O entendimento da dimensão disto pode ser difícil para quem não conheça a realidade, mas a verdade é que apesar do congelamento dos salários dos farmacêuticos na última década, do aumento em 70% do número de items dispensados e da importantíssima implementação de todos os novos serviços, mais de 90% da farmácias britânicas continuam a ter apenas UM farmacêutico!! Isto num cenário de regulamentações apertadas sem espaço para erro humano e numa cada vez maior cultura estilo americano do processo em tribunal por qualquer erro ou aconselhamento errado.
Estou, efectivamente, a ficar fartinho. Outros farmacêuticos portugueses por cá que deixem a sua opinião sobre este tema (a corroborar ou a contradizer o que escrevi).
Como disse inicialmente, sou frequentemente contactado por farmacêuticos portugueses. Em alguns casos acabo por acompanhar o todo o processo inicial adaptação, e quase sempre acabo por receber emails ou conversas no chat a dizer qualquer coisa do género "tu dizias que aqui se trabalhava muito, mas isto é de loucos"...
Como estamos a chegar ao fim do ano vou fazer previsões para o futuro da profissão:
- Os mais velhos vão cada reformar-se ou mudar de profissão mais jovens. Vejo uma dificuldade enorme de farmacêuticos mais velhos, que estavam habituados ao bem bom, em acompanhar o ritmo actual.
- Saturação do mercado de trabalho e consequente descida de salários. As maiores cadeias de farmácias (mais de 55% do total das farmácias pertencem as estas companhias) já não recrutam activamente farmacêuticos europeus e na maior parte dos casos em que são contactadas directamente recusam candidaturas.
- PCT's - Primary Care Trusts (equivalente às ARS - Administração regional de saúde) vão ser extintos sendo que toda a gestão dos serviços de saúde vai passar a ser feita pelos centros de saúde (Portanto médicos de família). Na minha opinião, nada de bom para as farmácias virá daqui.
- Diversificação dos papeis dos farmacêuticos. Acredito que muitos farmacêuticos irão deixar a farmácia comunitária para trabalhar em Hospital e em Centros de Saúde ao lado dos médicos (muito concretamente na gestão e racionalização do orçamento anteriormente na mãos dos PCT's)
Se não estivesse verdadeiramente estável e feliz com a minha situação específica (e a Ana também razoavelmente feliz) já estaria a considerar mais seriamente outras possibilidades. Assim, e por enquanto, vou ali tomar um cocktail de sertralina com fluoxetina e citalopram.
PS: Peço desculpa aos que me contactaram via email e que ainda não receberam resposta. Fá-lo-ei.
PS2: Continua a haver farmácias pouquíssimo movimentadas onde o farmacêutico continua a poder "respirar" minimamente.
PS3: Na área hospitalar continua a haver falta de farmacêuticos, mas não conheço a realidade.
PS4: Continuo a ver com enorme frequência propostas de emprego para as ilhas da coroa britânica (Falklands, Santa Helena, Bermudas, Ilhas Caimão) que apenas requerem três anos de experiência profissional. Cada vez que vejo um destes anúncios, vou sempre tratar de ver todos os pormenores da posição oferecida, e depois fico uma boa meia hora a "imaginar"... No dia em que estiver ainda mais fartinho, não digo nada.
PS2: Continua a haver farmácias pouquíssimo movimentadas onde o farmacêutico continua a poder "respirar" minimamente.
PS3: Na área hospitalar continua a haver falta de farmacêuticos, mas não conheço a realidade.
PS4: Continuo a ver com enorme frequência propostas de emprego para as ilhas da coroa britânica (Falklands, Santa Helena, Bermudas, Ilhas Caimão) que apenas requerem três anos de experiência profissional. Cada vez que vejo um destes anúncios, vou sempre tratar de ver todos os pormenores da posição oferecida, e depois fico uma boa meia hora a "imaginar"... No dia em que estiver ainda mais fartinho, não digo nada.