quinta-feira, 3 de maio de 2012

Ensaio sobre crise financeira

Como gajo cheio de opinião que sou não poderia deixar passar ao lado deste blog o 1º de Maio, dia do trabalhador.

Seja nas redes sociais, seja nos noticiários na TV, seja por toda a internet, só se fala sobre um tema:

O dia 1 de Maio/Pingo Doce:

Graças ao facebook, hoje em dia, toda a gente tem opinião sobre tudo (o que é bom) e foi interessante ver posições bastante polarizadas em relação aos eventos que decorreram da promoção dos 50% no Pingo Doce.
Basicamente assistiu-se a um "Isto é que é bom, estamos em crise por isso é de aproveitar, e quem trabalhou estava a ser pago, e fê-lo por opção" vs "Isto é uma afronta contra os direitos dos trabalhadores, que provavelmente foram coagidos a trabalhar, e sobretudo associado ao simbolismo do dia 1 de Maio".

Mas acima de qualquer opinião estão factos. Alguns deles são:
- Estamos em crise. A maior parte das famílias, por necessidade, compra de forma inteligente, cada vez a compararem preços de forma mais atenta e a fazerem opções sobre uma relação preço/qualidade de acordo com a situação financeira.
- O Pingo Doce invariavelmente perdeu dinheiro com qualquer cliente que tenha usufruído da promoção dos 50%. Os supermercados nem de perto nem de longe lidam com margens acima de 50%.
- Do ponto de vista económico, e tendo em conta que os preços do Pingo Doce são competitivos, aproveitar a promoção do Pingo Doce é um acto inteligente.


Toda esta novela terá começado uns dias antes do dia do trabalhador. Surgiram movimentos a apelarem ao "não às compras" por respeito pelo "trabalhador". Ora faz sentido. É fácil de nos identificarmos com os princípios defendidos por estes movimentos. (Aqui foi possível ver opiniões contra, quase invariavelmente, vindas daqueles cujas profissões implicam trabalhar aos Domingos/feriados. O lado egoísta e invejoso do ser humano).

1 de Maio. A notícia da promoção do Pingo Doce espalha-se como fogo em mato seco. Notícias começam a reportar filas de espera enormes (acima do que qualquer um numa situação normal admitiria estar disposto a aguentar), alguns desentendimentos que em diferentes localizações levam a intervenções policiais. Há inclusivamente relatos de cenas de pancadaria que acabam em hospitalizações. Os carrinhos de compras esgotam, e surgem relatos de pessoas a "arrendar" carrinhos de compras. Stocks esgotam e lojas fecham mais cedo e nessa altura provavelmente metade dos operacionais das forças de segurança portuguesas conseguem voltar aos seus postos iniciais.


Ler, ver e ouvir sobre estes acontecimentos trouxe-me imediatamente à memória o filme "Blindness" baseado no "Ensaio sobre cegueira" de José Saramago. Filme que por sinal gostei, sobretudo pela mensagem geral, que na minha opinião é que apesar de sermos seres super inteligentes, em termos evolutivos muito distantes dos nossos parentes do reino animal,  vivemos harmoniosamente em sociedade de uma forma que aparentemente resulta de valores e princípios sólidos. Mas toda essa harmonia é mais frágil do que possamos querer crer e basta um factor de "stress" para trazer ao de cima comportamentos que nos aproximam dos demais animais.

De que lado desta confusão é que estou? De nenhum! Faz tanto sentido alguém com dificuldades financeiras submeter-se a toda a tortura deste episódio do Pingo Doce para poupar 100 ou 200€ como faz sentido alguém com possibilidades financeiras não se submeter a isso, pois o rico e o pobre têm um "factor de stress" diferente.

Sabemos que estamos em crise, e não era preciso nenhum teste adicional para o verificar, mas a Jerónimo Martins neste 1º de Maio fez um verdadeiro Ensaio sobre a crise financeira, que confirmou o que todos já sabíamos. (Digo isto no sentido em que uma situação semelhante num país financeiramente mais estável não provocaria as mesmas cenas).

Deus nos proteja de um terramoto tipo o do Haiti, pois seremos humanos da mesma forma que eles foram.

Mais uma vez refiro que concordo perfeitamente com a opção de milhares de portugueses em aproveitar a promoção dos 50%. É realmente economicamente inteligente qualquer que seja o ponto de vista. Ter a liberdade financeira para não ter ido à compras ao Pingo Doce e orgulhosamente manifestá-lo, é vaidade e fica mal.


PS: A Jerónimo Martins mostrou a força do dinheiro, sobretudo numa situação de uma sociedade com fragilidades financeiras. Todos concordamos que é bom para uma sociedade ter dias de folga em comum para momentos de lazer, de convívio com a família e amigos. Todos concordamos que poderíamos facilmente passar sem supermercados (e muitas outras actividades profissionais) abertos aos Domingos e aos feriados, mas hoje quase todos os entrevistados à saída do Pingo Doce disseram que "gostaram", que "deveriam fazer estas promoções mais vezes", "que não há mal trabalhar ao feriado como os enfermeiros nos hospitais". Aparentemente muitos funcionários que trabalharam disseram que gostaram de o fazer, e que o "dinheiro extra veio mesmo a calhar". Muito provavelmente, qual fenómeno de Pavlov, no próximo dia 1 de Maio teremos filas à porta do Pingo Doce bem antes do horário de abertura. (independentemente de qualquer rumor sobre qualquer promoção do género). E assim os trabalhadores vão perdendo aos poucos os seus direitos.

Podemos criticar qualquer das posições observadas? Volto a dizer que não. Mas é uma autêntica delícia observar do ponto de vista sociológico os vários comportamentos, as várias opiniões polarizadas e toda a celeuma que gerou.


7 comentários:

  1. Concordo contigo quando dizes que é inteligente ter aproveitado esta promoção. De facto, num momento de crise como o actual, é uma excelente campanha para o consumidor que anda completamente depenado!

    No entanto, apesar de compreender o comportamento que esta campanha gerou e de também compreender quem critica o facto de a fazer no 1º de Maio, as minhas reservas colocam-se a outro nível: No curto-prazo, para o consumidor é bom pois gasta menos; no entanto, a longo-prazo, este tipo de comportamento económico gera ainda mais desemprego e redução do poder de compra, ao aniquilar alguma da concorrência. Não é por acaso que algumas grandes superfícies já estão a encerrar.
    Se todas trabalharem com margens razoáveis, todas (ou pelo menos uma grande parte) se poderão manter abertas e manter o emprego de milhares de pessoas; esmagando as margens desta forma, apenas as melhores colocadas se irão manter e muitos empregos serão perdidos. Esta é a realidade.
    Foi com este tipo de atitude que o Continente, o Pingo Doce e outras que tais, destruíram muitas pequenas empresas com as suas marcas brancas. A estratégia era mais ou menos esta: aliciavam uma empresa que fazia, por exemplo, bolachas, com um contrato para quintuplicar a produção, a um preço mais baixo, mas aceitável; a empresa investia, aumentava as instalações, e produzia; Nunca receberia o que estava combinado porque o contrato é sempre leonino e prevê deduções ao preço no caso de haver atrasos (contados ao minuto...); no fim do contrato e depois de todo o investimento feito, apresentam uma proposta de renovação do contrato com redução de 50% do preço: é pegar ou largar.
    Resultado: essa empresa faliu e hoje a produção dessas bolachas é feita por algum concorrente que ainda acredita no Pai Natal ou então numa qualquer empresa low cost de um outro país.
    É este o resultado do "quanto mais barato melhor".
    Tudo tem um custo - Não há almoços grátis - mesmo no 1º de Maio.

    Claro que não se consegue fazer ver isto a um desempregado que tem que por comida na mesa da família e por isso, repito, o comportamento das pessoas foi apenas racional!

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  2. Obrigado pelo comentário. Ainda bem que estamos de acordo.

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  3. Delicia!? Vai ver o vietname que se passa no meu blog lol Delicia-te com o vendaval politico que lá vai lol

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  4. Já agora, convém ver porque a ministra da agricultura acha inadmissível o comportamento da JM. Na verdade, a JM quer fazer com que os seus fornecedores paguem a promoção, apesar de não a terem promovido. É a tal lógica das marcas brancas a funcionar: Ou só recebes metade do que forneces e continuas a ter um cliente, ou queres receber aquilo a que tens direito e perdes a JM!.

    A curto-prazo: Fantástico, Maravilhoso, Grande Filantropo!
    No futuro: Mais desemprego, menos poder de compra, mais falências.
    Culpa: O Governo, claro!!! As empresas como a JM nunca!!!

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  5. "Mas acima de qualquer opinião estão factos. Alguns deles são:
    (...)
    - O Pingo Doce invariavelmente perdeu dinheiro com qualquer cliente que tenha usufruído da promoção dos 50%. Os supermercados nem de perto nem de longe lidam com margens acima de 50%."

    Isto é um facto? Gostava de saber quais os números que o sustentam. Eu não tenho factos mas tenho factoides bastante contraditórios.

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  6. Obrigado pelo comentário Azrael. É realmente verdade que em produtos frescos, e portanto perecíveis, como carne, peixe e vegetais que os hipermercados lidam com margens de 50%. Nos Kellogg's, Superbocks,Nescafés, Vinhos, Leites UHT, e outros produtos de marca não acredito. Sabendo as margens de superfícies comerciais de tamanho pequeno/médio não será possível. Sei que os hipermercados têm um poder de negociação enorme, mas também devido a esse facto é que conseguem vender relativamente mais barato.

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  7. 10 milhões de prejuízo com a campanha de 1º de Maio:
    http://rr.sapo.pt/informacao_detalhe.aspx?fid=24&did=71273

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