quinta-feira, 14 de março de 2013

Dia a dia na farmácia britânica

Post com interesse apenas para farmacêuticos. Aviso logo no primeiro parágrafo, por isso não se queixem que é aborrecido.

De certa forma já aqui falei dos variados serviços prestados nas farmácias britânicas, e como nesta segunda-feira passada fui durante o percurso de regresso a casa a pensar nisso cá vou escrever este post. Talvez tenha pensado nisso porque nesse dia fiz um pouco de tudo.

Além do classico aviar de receitas médicas e aconselhamento farmacêutico que isso acarreta e da resposta as solicitações para aconselhamento de medicamentos não sujeitos a receita médica lidei com os seguintes serviços: (que cada vez mais são uma forma importante de financiamento da farmácia)

Medicines Use Review (MUR): É uma "consulta farmacêutica" entre o farmacêutico e o utente numa sala de consulta. O utente é elegível para o MUR se tiver recebido os últimos 3 meses de medicação para condições crónicas da farmácia em questão. Nesta consulta tento perceber se existem interacções entre os medicamentos tomados de forma regular, se são tomados na melhor altura, se existem efeitos secundários e como podem ser evitados, se existem problemas na administração dos mesmos etc etc. Sugestões mais simples são passadas directamente ao utente, sendo que situações mais sérias são encaminhadas para o médico de família. Este serviço é gratuito para o utente e a farmácia recebe 28 libras por cada consulta. (cada farmácia pode fazer um máximo de 400 MURs por ano).
Nessa segunda feira apenas fiz um MUR, mas na terça-feira completei quatro. Vão-se fazendo conforme disponibilidade de tempo por parte do farmacêutico e oferta de utentes com quem ter estas consultas.

New Medicine Service (NMS): Este é um serviço mais recente. Envolve duas consultas de seguimento farmacêutico com o utente a quem foi prescrita medicação nova, pertencente a determinadas categorias farmacoterapêuticas (de momento abrange medicamentos para o sistema respiratório e medicação para hipertensão). Primeira consulta (intervention consultation) cerca de duas semanas após inicio da terapia e segunda consulta (follow up consultation) após quatro semanas. Este serviço é gratuito para o utente e a farmácia recebe entre 20 e 28 libras por cada NMS completo. (o pagamento é complexo, dependendo do número total de NMS completos pela farmácia, daí 20 a 28 libras). Nessa segunda-feira fiz uma consulta (após duas semanas - intervention consultation) com um jovem a quem tinha sido prescrito um inalador de salbutamol pela primeira vez. Verifiquei que usava a técnica correcta de inalação, e dei uma explicação sobre em que situações usar o medicamento e o que esperar dele. Perguntei sobre a sua eficácia, efeitos secundários e opinião geral do paciente sobre o medicamento. Esclareci qualquer dúvida que me colocou.

Supervised consumption of methadone/buprenorphine: Este serviço (também existente em Portugal, mas numa escala diferente) envolve supervisionar a toma da dose de um substituto de opioides (ie heroína). Creio que cada dose supervisionada atrai um pagamento de 1,75 libras. A supervisão da toma de comprimidos (por exemplo buprenorfina sublingual) tem um pagamento ligeiramente maior pois é um processo mais moroso. Numa farmácia como a minha,  são dispensadas entre 40 e 90 doses diárias (há dias da semana mais ocupados que outros) e mais de metade são supervisionadas. (além do pagamento pela supervisão do consumo da dose, ainda há um pagamento pela dispensa de cada dose). Este serviço prestei-o várias vezes nessa segunda-feira.

Morning After Pill: Pílula do dia seguinte. Farmacêuticos com formação para tal podem fornecer a pílula do dia seguinte de forma gratuita e muitas vezes em situações que ultrapassam as indicações do medicamento (por exemplo a menores de 16 anos). Este serviço envolve uma consulta entre o farmacêutico e a utente numa sala de consulta. O serviço e pílula é gratuita para a utente e a farmácia recebe cerca de 15 libras por consulta mais os custos que esta acarretar,  como a pílula do dia seguinte (que nem sempre é fornecida) e testes de gravidez (que de vez em quando são utilizados em linha com a guide-line). Nesta segunda-feira apenas fiz uma destas consultas.

Chlamydia Screening: Despiste da DST Clamídia. Este serviço pode ou não ser acoplado à consulta da pílula do dia seguinte. Envolve a colheita de uma amostra de urina e o envio da mesma para análise microbiológica. O utente recebe os resultados por SMS ou carta e tratamento em caso de presença da DST.  Creio que a farmácia recebe cerca de 4 libras por cada amostra enviada para análise, sendo gratuito para os utentes. Nessa segunda-feira enviei uma amostra para análise.

Smoking Cessation: Consultas de cessação tabágica. Não fiz a formação para este serviço e como o NHS não exige que seja providenciado pelo farmacêutico, na minha farmácia foi uma técnica de farmácia que adquiriu qualificações para este serviço. Este serviço envolve consultas semanais com os utentes, com aconselhamento, monitorização dos níveis de monóxido de carbono e prescrição de medicação para efeitos de cessação tabágica. As consultas são gratuitas para o utente e aos medicamentos prescritos aplicam-se as mesmas regras dos prescritos por outros prescritores (ie médicos), onde na prática quase ninguém paga, e se o fizer nunca é muito. A farmácia recebe acima de 50 libras por cada utente bem sucedido. Nessa segunda-feira a farmácia realizou 2 ou 3 consultas de cessação tabágica.

Há ainda vários outros serviços prestados pelas farmácias britânicas com os quais não lidei nesse dia.

Em suma, o dia a dia é bastante agitado e variado.  Este post mostra como a farmácia de cá está menos dependente do rendimento proveniente das fontes tradicionais (dispensa de medicamentos e venda de medicamentos não sujeitos e receita médica e outros produtos de saúde). Todos os serviços acima prestados são financiados directamente pelo sistema se saúde britânico e não de forma privada pelos utentes. Esta parceria Estado/Farmácias é algo que é praticamente inexistente em Portugal, o que é de lamentar.





7 comentários:

  1. Em portugal a relação entre estado/farmácias é o completo oposto. Com o estado a tentar inventar justificações para não pagar receituário sempre que pode e com milhões de euros de pagamentos em atraso e algumas farmácias a incorrerem em processos de burla.

    No entanto, pelo que me apercebo, do lado dos farmacêuticos há vontade de iniciar serviços desses também por cá.

    Interessava-me saber o que levou à materialização desses serviços. Houveram estudos que evidenciaram as suas mais valias? Foi fruto de negociação entre a ordem e o NHS? Quem tomou a iniciativa de os propor, o NHS ou os Farmacêuticos?

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    1. Estes estudos de farmaco-economia são algo sempre presente em cada decisão tomada pelo NHS. É com muito agrado que vejo esses estudos, que permitem decisões racionais e economicamente viáveis.

      A maior parte deste serviços como MUR e NMS são relativamente recentes, a decorrer há menos de 6 anos. Não sei bem que tipo de negociações estiveram em cima da mesa, mas sei que nos últimos 6 anos houve uma diminuição progressiva da remuneração por acto de dispensa de medicamentos à medida que estes novos tipo de serviços foram introduzidos.
      Basicamente, em relação ao período anterior à existência destes serviços, uma farmácia que dispense o mesmo número de itens e não faça nenhum destes novos serviços, terá uma facturação menor nos dias de hoje. Uma farmácia que dispensando o mesmo número de itens de há 6 anos atrás, mas tire o máximo partido dos novos serviços, terá mais lucro agora que antes. É justo.

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  2. Subscrevo o comentário do Azrael, aqui em Portugal estamos, infelizmente, a anos-luz de vir a implementar esses serviços dessa forma, o que é uma pena porque se privilegiaria a prevenção/correcto acompanhamento a que os centros de saúde não têm capacidade para dar resposta....
    Joana

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  3. Joana, eu não diria que estamos a anos luz porque há farmacêuticos com vontade e há ferramentas para isso já hoje. Há até farmácias que já o fazem. Mas estamos seguramente mais longe de ter esses serviços reconhecidos e remunerados pelo estado.

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  4. Concordo.
    Este texto é chato. Só lí dois parágrafos. E mais umas frase soltas.
    Podia ter seguido o conselho e só ter lido um.
    Mas acredito que a certa altura também tenha interesse para os drogados.
    Como não é o meu caso, não importa.

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  5. Apesar de ter noção que já não é fácil como há 2 ou 3 anos atrás ir trabalhar para o UK estou novamente motivada e empenhada nesse objectivo...se puderes dar-me algumas dicas Eugénio ficava muito grata. Ser Farmacêutico em Portugal é cada vez mais desmotivante...está a perder-se o papel do Farmacêutico como prestador de cuidados e serviços, como agente de saúde pública e cada vez que leio um post teu como este fico com 100% de certeza que no UK me sentirei mais realizada.

    O meu mail: diana.t.henriques@gmail.com

    P.S. Parabéns pelas meninas lindas,já há algum tempo que não vinha visitar o teu blog e tive uma...ou melhor duas belas surpresas :)

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